quinta-feira, 29 de maio de 2008

caio. meus dedos entorpecidos tateiam o chão gelado e úmido. a solidão vagueia entre quadros tortos. dizem que dá azar! a arte pelo todo. em paredes frias. o gato preto rodeia flores de plástico. derrubando tudo. destruidor! não precisa ir assim, com tanta sede ao pote. uma queda feia e brusca para a realidade! e esse som irritante. deixe de ser tão preguiçoso e abre teus olhos. agora, deitado no chão, me olha com seu olhar sonso. as patinhas abrindo e fechando... lenta mente. um espasmo e sua pupíla dilata. muda de posição e fica atento. todos os sentidos aguçados. por que esse olhar tão triste, Frida?

terça-feira, 27 de maio de 2008

Sonetos que não são

de Hilda Hilst

Aflição de ser eu e não ser outra.

Aflição de não ser, amor, aquela

Que muitas filhas te deu, casou donzela

E à noite se prepara e se adivinha

Objeto de amor, atenta e bela.

Aflição de não ser a grande ilha

Que te retém e não te desespera.

(A noite como fera se avizinha.)

Aflição de ser água em meio à terra

E ter a face conturbada e móvel.

E a um só tempo múltipla e imóvel

Não saber se se ausenta ou se te espera.

Aflição de te amar, se te comove.

E sendo água, amor, querer ser terra.

( Roteiro do Silêncio(1959) - Sonetos que não são - I)

sábado, 24 de maio de 2008

Para uma avenca partindo - Caio Fernando Abreu

Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? Olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme dessas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando meu raciocínio? Falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei porque todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor pensei sim, não, pensar propriamente dito não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma outra coisa atrás e além das nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu não falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viveras superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende? Por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer a você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser muito tarde, daqui a pouco não vai mais ser possível, e se eu não disser tudo não poderei nem dizer e nem fazer mais nada, é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o que estou fazendo, sim, esta é minha última tentativa, olha, é bom você pegar sua passagem, porque você sempre perde tudo nessa sua bolsa, não sei como é que você consegue, é bom você ficar com ela na mão para evitar qualqueratraso, sim, é bom evitar os atrasos, mas agora escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor não é? Por isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando também nas coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouvi-las, disponível em relação a quê? Não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender, melhor, claro que eu dou um cigarro pra você, não, ainda não, faltam uns cinco minutos, eu sei que não devia fumar tanto, é eu sei que os meus dentes estão ficando escuros, e essa tosse intolerável, você acha mesmo a minha tosse intolerável? Eu estava dizendo, o que é mesmo que eu estava dizendo? Ah: sabe, entre duas pessoas essas coisas sempre devem ser ditas, o fato de você achar minha tosse intolerável, por exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir que você não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não aprofundando não concluo nada, fico só querendo te dizer de como eu te esperava quando a gente marcava qualquer coisa, de como eu olhava o relógio e andava de lá pra cá sem pensar definidamente e nada, mas não, não é isso, eu ainda queria chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um diadestes eu descobri existindo, porque eu nem supunha que existisse, acho que foi o fato de você partir que me fez descobrir tantas coisas, espera um pouco, eu vou te dizer de todas as coisas, é por isso que estou falando, fecha a revista, por favor, olha, se você não prestar muita atenção você não vai conseguir entender nada, sei, sei, eu também gosto muito do Peter Fonda, mas isso agora não tem nenhuma importância, é fundamental que você escute todas as palavras, todas, e não fique tentando descobrir sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas, pelo menos para quem ouve, e depois, você sabe, eu sempre tive essa preocupação idiota de dizer apenas coisas que não ferissem, está bem, eu espero aqui do lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuamos conversando enquanto o ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo numa só frase, você vai ......... ............ ............. ............ .......... ........... ............. ............ ............ ............ ......... ........... ............ ............ sim, eu sei, eu vou escrever, não eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? Escuta, não fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malas e as botas, fica tranqüila, esse velho não vai incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e exclusivamente sua, por que você fica sempre me interrompendo e me fazendo suspeitar que você não passa mesmo duma simples avenca? Eu preciso de muito silêncio e de muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

a janela estava suja, mas não se importou com aquela poeira toda; sentou-se lá e prestou atenção nas cores. do lado de fora, a lua tentando ser a dona de um brilho que não era dela. as estrelas tentaram fazer parte de todo o conjunto. eles não deixaram que o chão sumisse com a escuridão. ela podia vê-lo bem, mas não sabia pra que lado cair. do lado de dentro, tudo meio amarelo-colorido. não entendia bem essas coisas de combinar aquelas cores, se tinham sido feitas para ela, ou se ao menos aquilo lhe servia. "compreenda-me, é uma decisão difícil.. pra que lado.. talvez deva escolher por...". "compreender? deixe que o corpo escolha e caia logo duma vez!". "eu não deixaria que o meu corpo escolhesse por mim.. quem sabe eu não deva pensar muito nisso e escolher ficar em cima da janela.. é! talvez seja isso!". permaneceu lá por alguns instantes. logo se conformou de que uma queda dura na escuridão seria bem menos doída que manchar aquele colorido com seu pretobranco.

domingo, 18 de maio de 2008

desbotado.

não me importo mais com podridão ou com o mau cheiro. toda doçura do meu coração se desbotou e o vento frio roubou o seu lugar num pulo tão rápido que nem vi. e to achando bem melhor assim; engolir a solidão a seco, fumar todo o amor, deixar queimar. as coisas começaram a se desbotar, até o céu ficou cinza. daqui do meu buraco eu só sinto o meu próprio fedor, a minha podridão. eu só preciso do meu próprio nojo por esse mundo podre. me escondendo de tudo dentro da solidão. mesmo que tudo isso doa, eu não vou sangrar mais. não quero mais a tristeza machando os meus dias nas árvores que recortam o céu, e vejo daqui, você com metade de um coração desbotado. por favor, se não for mais fazer uso dele, devolva-me. antes cair de joelhos do que pular da janela~

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Sem rastro.

Depois de alguns passos pelas calçadas, e até atravessar algumas ruas, numa distância de mais ou menos um quilômetro, eu cheguei. Lá embaixo, tudo em seu lugar. Meu coração acelerou ao pensar em como aquele mesmo lugar em que vivemos, sorrimos, falamos e sentimos, estaria. Subi as escadas tentando imaginar tudo vazio, minha vida, meu coração, e aquele lugar sem você. Ao abrir a porta, me deparo com um nada. Nem um bilhete, nenhuma lembrança tua.. apenas minhas coisas jogadas no chão.

domingo, 11 de maio de 2008

Meu coração desabou em prantos, a rocha sólida se quebrou em vários pedaços, "como um anel de vidro que alguém não cuidou". O que era pra um dia ser inquebrável, tornou-se totalmente frágil. "É inútil, é inútil ficar se remoendo por isso", penso naquelas coisas que até ontem foram tão bobas e lindas, e que agora me matam! E para cada lado que olho, vejo seu coração estampado nos dias que foram tão alegres e risonhos.
Ainda não faz nem um dia que você não abraça meu coração e a carência já é tão grande que me sufoca, me agoniza!
Aquela tristeza toda voltou e já se alojou no canto esquerdo do meu peito com toda a sua amargura e dor. Vai me queimando por dentro, dilacera meu coração e me faz sangrar. Me suga o sangue como nunca fez antes.
Volta amor, e suga toda essa dor de dentro da minha alma.

terça-feira, 6 de maio de 2008

passaram-se os meses belos
de flores e céus tão coloridos e doces.


e então, ele disse:
- primavera, tudo nasce.. verão vai passando.. outono tudo seca, e inverno.. as folhas caem.


acho que eu mereço mais do que num outono cinza todas as flores secarem,
e num vento frio de inverno cortante, caírem.

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"Esta é a hora de jogar uma garrafa em todos eles", pensei. Peguei uma garrafa e... enchi meu copo até a borda.
"...Não, é melhor ficar aqui sentado até o fim!", continuei a pensar. "Os senhores ficariam contentes se eu fosse embora. Por nada neste mundo! De propósito vou ficar aqui sentado e beber até o fim para mostrar-lhes que não dou a mínima importância aos senhores. Vou ficar aqui sentado e beber, porque isto aqui é um boteco e eu paguei para entrar. Vou ficar sentado e beber, porque para mim os senhores não passam de fantoches, fantoches que não existem. Vou ficar sentado e beber... e cantar, se eu quiser, é isso, senhores, e cantar, porque tenho esse direito... de cantar... hum".
Dostoiévski